Desabafo numa despedida

O novo olhar, o sentir na profundidade, o amor por estes seres que entraram num ciclo num mundo alternativo talvez por revoltas, por dores, sofrimentos, experimentação, recreação, pouco importa.

Olá, neste momento de mudanças, venho, com muita tristeza, apresentar as minhas justificativas e um pouco da minha história.

Meu nome, bem... meu nome é PréConceito. Tenho tantos anos que nem sei contar mais. Moro em muitos lugares, alguns inimagináveis. Mas acreditem: estou lá.

Particularmente a minha historia começa quando a minha amiga IgNorância reinava absoluta sobre o assunto drogas. Imaginem, em pleno século 21 ainda não conhecemos, na real, como é este relacionamento das pessoas com estas substâncias. Algumas lícitas, nome “bunitinho”, mas que estrago elas fazem - é fácil para conseguir, pode ser gostoso, há muito incentivo, mas depois dá uma canseira para se livrar dos efeitos e das doenças. As outras, aquelas chamadas ilícitas, tem para todo jeito: começa com as mais simples, de baixo custo, e leves, e vai evoluindo até aquelas com os efeitos mais daninhos no organismo, as chamadas pesadas. E se misturar umas com as outras, vixe... aí a coisa pode ficar feia. O barato pode ser caro, desculpem o trocadilho.

Nisto tudo, começa o meu reinado, junto com outros do meu gênero: de cor, raça, credo, entre tantos, e ainda tem aqueles quanto aos “adictos”, os drogados, criando adjetivos, nomes pejorativos, tarjas. E olha que classificar o outro é tranquilo, a consciência não reclama não, mais agradável, ainda, é sentir o nojo e a indiferença de alguns ao passar pelos “desfavorecidos”, que se iniciaram neste ciclo e agora lutam por abandoná-lo. A sociedade clama por acabar com o vicio, mas quase sempre acaba com o ser também. Faltam olhos e amor para vê-lo, separando o ser do estar naquele momento. E quando eles recaem, aí eu cresço mais ainda: surgem novos nomes, julgamentos, quase uma crucificação, só porque eles ainda não conseguiram o sucesso prometido. Às vezes, pensem bem, até com a negação de novas chances e tratamentos. E assim eu vou ganhando espaço.

Mas algo começou a mudar. Surgiram grupos de estudos, pessoas inconformadas que queriam ajudar, tratar, acolher, fazer algo para, ao menos, reduzir os danos. Leis foram criadas, instituições foram organizadas e bem ou mal tudo começou a modificar. Os usuários começam a ter onde recorrer, onde tratar-se - não por exclusão, mas por cidadania - e vão virando pessoas. Vi a minha amiga IG definhando... Surgiu então a oportunidade de um curso no CRR da UFSCAR. Fiquei logo a desconfiar, disseram que era para preparar e multiplicar os agentes envolvidos nesta batalha. No começo tudo era meio estranho, muitas dúvidas, siglas, órgãos de saúde, sistemas, rede de atendimento, acolher, tantos termos... ai que sufoco. O que é isso? Tratamentos primitivos, experiências pessoais. Confesso: tive que apelar, pois estava perdendo terreno. Chamei a prima de um amigo, a PreGuiça, e já fui logo dizendo “olha, são 11 dias de aula, uma vez por semana, é longe (em Sorocaba) tem que chegar cedo, e tudo mais', para ver se dava uma liga e tudo se resolvesse rapidinho, e assim eu poderia continuar no meu lugar supremo. Mas qual. Não teve jeito. Uma das minhas piores inimigas apareceu e logo assumiu as rédeas: a Curiosidade. Muito chata essa talzinha. Já vem se achando a rainha do forro de são João.

 Foi chegando e detonando de cara a coitada da IG, absorvendo conhecimentos e conceitos novos. A Pre, tadinha, foi derrotada “facinho, facinho”: o tal do “PBL” foi fatal. O frio, a chuva, a falta de energia elétrica até ajudaram, mas sem resultado. E eu, pobre de mim, definhando a cada novo dia de encontro.

Ah, não posso me esquecer das visitas, de grande valia, para eles, claro. Iam me derrotando, acabando com o pouco que havia de mim... uma tristeza. Participar daquelas terapias, ver aqueles rostos, conhecer nomes, histórias, vivências, incertezas, experiências, tudo me incomodava, e eu me esvaindo... sentia que o fim era próximo.

Agora, nos meus estertores, aqui me convulsionando, só me resta este desabafo de revolta, sentindo que meu espaço já não existe, e continuo achando que fui injustiçado. Perdi a batalha ante ao conhecimento, a vontade de agir, a busca por opções a tratamentos, ideias fervilhantes, louvores e espelhamento naqueles que lutam pela melhoria do outro. O novo olhar, o sentir na profundidade, o amor por estes seres que entraram num ciclo num mundo alternativo talvez por revoltas, por dores, sofrimentos, experimentação, recreação, pouco importa. Muitos só os olham com desagravo, mas são somente pessoas gritando por socorro, pela ajuda que desconhecem, pelo espaço que também lhes pertence. E eu aqui, querendo permanecer no meu trono de egoísmo, de facilidades, de inoperância, de prazeres efêmeros, da falsa resolução dos problemas, de irrealidades. Tudo mudou. Acabou.

Não tenho mágoas, pois estes novos sentimentos, multiplicando-se, irão certamente auxiliar a humanidade, e pouco a pouco destruir-me definitivamente do convívio social, ao menos quando o assunto for: Drogas, sou usuário, posso te ajudar?

 Sidnei Antonio Pinto – Julho/2016 - CRR – UFSCAR – Sorocaba

dche.pnglogo-proex-positivo.pnglogoufscartrans.png Crack senad brasil